Entre o impacto da tragédia e o clamor por respostas, há um compromisso que não admite falhas: o do Estado em agir com técnica, transparência e responsabilidade institucional.
Introdução
Quando uma aeronave cai, o relógio institucional do Estado deveria disparar automaticamente. Cada minuto é valioso não apenas para salvar vidas, mas para preservar a verdade técnica que sustenta a prevenção aeronáutica. Nesse contexto, o papel da autoridade pública não é apenas o de investigar, mas de garantir que o processo investigativo ocorra dentro dos parâmetros legais, técnicos e éticos que o sistema de aviação internacional exige.
O Estado tem deveres intransferíveis: preservar o local do acidente, assegurar a integridade das evidências, coordenar a comunicação com transparência e respeitar o sigilo técnico que protege a cultura de segurança. Falhar em qualquer um desses pontos significa abrir brechas para a desinformação, a impunidade e o descrédito institucional.
Mais do que uma formalidade administrativa, a atuação da autoridade pública após um acidente aéreo é um termômetro da maturidade de um país em lidar com suas próprias fragilidades e um reflexo direto de quanto valor damos à vida, à justiça e à prevenção.
Quando o silêncio do céu exige ação
Em cada acidente aeronáutico, a primeira pergunta que ecoa não é apenas “o que aconteceu?”, mas “quem deveria ter agido e como?”. Nesse momento, a autoridade pública deixa de ser mero observador e passa a ser protagonista de um processo técnico e jurídico delicado, onde o tempo, a precisão e o respeito às normas são determinantes para a verdade dos fatos.
Obrigações que não podem ser delegadas
A atuação estatal é regida por deveres legais e morais. O Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei nº 7.565/1986) impõe ao poder público a obrigação de investigar, prevenir e preservar evidências com rigor técnico. Já o Anexo 13 da Convenção de Chicago reforça o papel central do Estado na condução das investigações, garantindo que a busca por culpados não sufoque a busca por causas. O CENIPA, braço técnico da Força Aérea Brasileira, conduz a investigação com foco na prevenção. Mas o dever não termina ali: a ANAC, o Ministério Público e o Poder Judiciário também assumem papéis complementares que devem se articular sem interferências ou sobreposições.
Entre o sigilo e a transparência
A autoridade pública caminha sobre uma linha tênue: proteger o sigilo técnico das investigações para não comprometer futuras prevenções, e ao mesmo tempo garantir transparência e respeito às vítimas. O desafio é equilibrar a técnica aeronáutica com o dever democrático de prestar contas. O segredo, quando mal compreendido, parece encobrir. Mas quando bem aplicado, protege a essência da prevenção e fortalece a confiança social no sistema.
Justiça que aprende, Estado que previne
Cada relatório final publicado, cada recomendação de segurança emitida, é mais do que um ato administrativo é uma obrigação ética do Estado com a sociedade. Ignorar essas recomendações ou tratá-las como mera formalidade é permitir que o passado se repita com novas vítimas e novos nomes.
O dever estatal não se encerra com a perícia: ele se renova a cada medida de prevenção implementada, a cada lição aprendida, a cada política pública revista.
Conclusão
Um Estado que não conduz suas investigações com rigor técnico, nem comunica seus achados com transparência, compromete dois pilares da segurança aérea: a credibilidade institucional e a confiança social. A ausência de método técnico-científico fragiliza o processo de apuração e mina o aprendizado sistêmico que cada ocorrência deve gerar. Na aviação, a verdadeira resposta ao erro não é a punição precipitada, mas a correção estrutural baseada em evidências.
Assim, a autoridade pública não deve atuar como mero julgador ex post facto, mas como agente indutor de aprimoramento contínuo do sistema aeronáutico, promovendo a cultura de segurança e assegurando que as recomendações técnicas se convertam em políticas preventivas efetivas. Prevenir continua sendo mais eficiente e mais justo do que punir.
Referências
BRASIL. Lei nº 7.565, de 19 de dezembro de 1986. Código Brasileiro de Aeronáutica. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 23 dez. 1986.
BRASIL. Decreto nº 21.713, de 27 de agosto de 1946. Promulga a Convenção sobre Aviação Civil Internacional (Convenção de Chicago), de 7 de dezembro de 1944. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, RJ, 30 ago. 1946.
ORGANIZAÇÃO DA AVIAÇÃO CIVIL INTERNACIONAL (ICAO). Anexo 13 à Convenção de Chicago – Investigação de Acidentes e Incidentes Aeronáuticos. 11ª ed. Montreal: ICAO, 2016.
CENIPA – Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos. Manual de Investigação de Ocorrências Aeronáuticas. 5ª ed. Brasília: CENIPA, 2021.
Por Hilton Rayol.

