A aviação contemporânea atingiu um grau de complexidade que torna impossível compreender acidentes apenas pela lente clássica do “erro humano”. Esse modelo reducionista ainda muito presente nos discursos mais apressados supõe que o desfecho indesejado é, em si, a explicação. Entretanto, quando adotamos uma abordagem cognitiva fundamentada na ação e na cognição situadas, o erro deixa de ser o veredicto final e se transforma no ponto de partida para uma análise realmente madura.

O eixo central desse paradigma é simples e poderoso: o ser humano não age no vácuo, tampouco raciocina desconectado do ambiente. Toda decisão operacional emerge de um contexto que inclui pressões, ambiguidades, recursos disponíveis, sinais contraditórios, cultura organizacional, interfaces tecnológicas e limitações estruturais do próprio organismo humano. Assim, o que tradicionalmente se rotularia como “falha” passa a ser interpretado como uma adaptação local, uma escolha que fez sentido naquele momento específico para quem estava ali.

Sob essa ótica, a análise de acidentes abandona a caça a culpados e assume seu verdadeiro propósito: entender a ecologia da ação humana. Isso implica mergulhar na situação concreta vivida pelos pilotos, controladores ou mecânicos, reconstruindo não apenas o que fizeram, mas o porquê aquelas ações eram razoáveis dadas as informações, percepções e restrições disponíveis.

Esse deslocamento de foco transforma completamente a qualidade da investigação. O erro não aponta para quem errou; aponta para onde investigar. Ele sinaliza lacunas cognitivas, fragilidades de interface, falhas de comunicação, expectativas incorretas, modelos mentais inadequados, treinamentos insuficientes ou políticas organizacionais ambíguas. Em outras palavras: o erro é sintoma, não diagnóstico.

Ao tratarmos a cognição como situada, abandonamos a ideia de que profissionais altamente treinados operam como máquinas ideais, dotadas de atenção infinita e racionalidade perfeita. Pelo contrário: reconhecemos que sua performance é moldada por restrições biológicas, demandas da tarefa, dinâmicas sociais, ruído informacional, ferramentas tecnológicas, normas implícitas e incentivos organizacionais. A partir daí, torna-se evidente que não basta perguntar “o que o piloto fez errado?”, mas sim:

  • O que naquele contexto levou essa ação a parecer correta?
  • Que sinais o ambiente forneceu ou deixou de fornecer no momento crítico?
  • Que crenças, heurísticas e expectativas orientaram a tomada de decisão?
  • Como a pressão operacional, o cansaço, a automação ou a cultura organizacional influenciaram a percepção?

Esse método abre espaço para uma leitura mais refinada das condições que, silenciosamente, pavimentam o caminho até o acidente. De repente, aquilo que antes era atribuído a descuido, negligência ou imperícia revela-se como um descompasso entre o projeto do sistema e as necessidades cognitivas dos operadores. É aqui que a investigação técnica se torna um instrumento de transformação: compreender o erro como ponto de partida permite corrigir contextos, e não apenas condutas. Permite fortalecer o sistema inteiro, e não punir o elo mais vulnerável.

Além disso, essa abordagem está profundamente alinhada ao espírito da Cultura Justa, fundamento de qualquer programa de segurança contemporâneo. Ao compreender o comportamento humano em sua complexidade, evitamos respostas punitivas irracionais que, além de injustas, erodem a confiança e reduzem drasticamente o volume de relatórios voluntários justamente o oxigênio da prevenção.

No final das contas, analisar acidentes sob o prisma da cognição situada nos devolve algo essencial: a capacidade de enxergar o profissional não como causador do erro, mas como a última barreira que lutou para manter o sistema funcionando em circunstâncias desafiadoras. E essa mudança de percepção não é apenas epistemológica; é profundamente ética.

O erro, portanto, não é a chegada. É a porta de entrada. É o convite para investigar o que estava acontecendo ao redor daquele profissional quando a decisão foi tomada.

E só quando aceitamos esse convite olhando para o ambiente, para a tarefa, para a cultura e para as pressões operacionais é que finalmente conseguimos aquilo que a aviação mais precisa: acidentes que não se repetem.

Por Hilton Rayol.

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