A discussão que ressurge de tempos em tempos nas redes e nos corredores da aviação “estão contratando pilotos com 150 horas” costuma vir carregada de preocupação legítima, mas também de uma boa dose de distorção histórica. Afinal, todo comandante, de qualquer frota, começou exatamente ali: com suas primeiras cento e poucas horas recém-saídas da formação básica. A diferença nunca esteve no número. Sempre esteve no sistema em que esse jovem piloto é inserido.
A pergunta correta não é: “150 horas são suficientes?”
A pergunta correta é:
“Como esse piloto está sendo preparado, supervisionado e integrado à operação?”
1- A Experiência Inicial não é o problema é a Regra
Nenhuma aviação saudável surge de pilotos prontos. O mercado só funciona porque existe um fluxo contínuo de jovens aviadores que, ao longo dos anos, são desenvolvidos pela indústria. 150 horas sempre foram o ponto de partida natural.
Reduzir o debate a esse número é um atalho perigoso, que mascara o verdadeiro cerne da questão: o sistema operacional que recebe esse profissional.
Se o ambiente é maduro, o piloto com 150 horas evolui com segurança.
Se o ambiente é frágil, até o piloto com 5.000 horas vira risco.
2- O Elemento Crítico: A Forma Como o Piloto é Inserido no Sistema
A etapa entre “ser piloto” e “ser piloto contratado” é onde a mágica ou o desastre acontece.
A empresa que absorve pilotos com baixa experiência precisa garantir:
- Treinamento estruturado, progressivo e realista;
- Programa de padronização rigoroso;
- Instrutores experientes que compreendam a responsabilidade do papel;
- Mentoria contínua, especialmente nos primeiros meses;
- Avaliações de competência que vão além do checklist tradicional;
- Cultura organizacional que não romantiza atalho nem normaliza desvio.
Quando essa engrenagem funciona, o piloto cresce rápido, com segurança e maturidade operacional.
Quando ela falha, não importa se o novato tem 150 ou 1.000 horas o risco será igualmente alto.
3- Cultura Organizacional: O Verdadeiro Termômetro da Segurança
Esse é um quesito relevante dentro do contexto, sem rodeios: a cultura da empresa vale mais do que as horas do piloto.
Uma organização com SGSO bem implementado, CRM vivo e liderança comprometida consegue transformar jovens pilotos em profissionais extremamente competentes. Em contrapartida, organizações que operam no “mínimo regulatório”, sem supervisão adequada, acabam criando um ambiente onde os erros são mais prováveis e muitas vezes, inevitáveis.
Vale ressaltar que experiência não é escudo contra falhas sistêmicas.
4- O Papel dos Instrutores e Comandantes Sêniores
A aviação é uma profissão artesanal. O conhecimento operacional, a leitura fina de cenário e o senso de antecipação não estão nos livros estão na transferência intergeracional de experiência.
Instrutores, checadores, comandantes e supervisores são agentes-chave no desenvolvimento seguro do jovem piloto. A pergunta que deveríamos fazer é:
Quem está formando esses pilotos? Com qual tempo? Em qual ambiente? Com qual suporte?
Investir na base é investir no futuro da operação.
5- A Verdadeira Questão: Escassez de Pilotos ou Escassez de Formação?
O cenário global mostra um fenômeno claro: as empresas querem contratar, mas não querem ampliar sua capacidade de formar. E aí o discurso distorce: o problema vira “o piloto jovem”.
Nada mais equivocado.
O que existe, na prática, é um hiato entre a demanda operacional e a oferta de treinamento estruturado e esse hiato, quando mal administrado, gera risco.
O ponto de tensão não são as 150 horas. É:
- o ritmo da instrução,
- a qualidade da supervisão,
- a maturidade do SGSO,
- e o compromisso institucional com o desenvolvimento de competências.
6- Conclusão: A Experiência é o Ponto de Chegada, Não o de Partida
A indústria precisa abandonar a falsa polêmica do número de horas e encarar o debate real:
como construir sistemas operacionais capazes de formar, absorver e amadurecer novos pilotos com segurança.
A segurança na aviação não se sustenta em horas de voo se sustenta em processos, cultura e responsabilidade sistêmica.
Quando o ambiente é sólido, o piloto com 150 horas cresce. Quando o ambiente é frágil, ninguém cresce. E a conta chega sempre.
Por Hilton Rayol


