A inevitabilidade do erro humano
Na aviação, a presença do fator humano não é um detalhe lateral, mas um elemento central de toda a engrenagem operacional. Diferentemente de sistemas automatizados, o ser humano carrega consigo um conjunto de limitações fisiológicas, cognitivas e emocionais que, inevitavelmente, influenciam a tomada de decisão. O erro, portanto, não é uma possibilidade remota: ele é uma condição inerente da atividade humana.
Diversos estudos em segurança operacional demonstram que até mesmo os profissionais mais bem treinados e experientes estão sujeitos a deslizes. O modelo do “queijo suíço” de James Reason evidencia que acidentes raramente decorrem de um único erro isolado; na maioria das vezes, são fruto de uma combinação de falhas latentes no sistema, deficiências organizacionais e vulnerabilidades humanas. Nesse sentido, culpar exclusivamente o indivíduo pelo insucesso é reduzir a complexidade de um ecossistema que envolve tecnologia, gestão, cultura organizacional e condições de trabalho.
Ademais, a aviação é um setor em que fatores como fadiga, pressões operacionais, ambiente de alta carga cognitiva e restrições temporais severas fazem parte do cotidiano. Ignorar esses elementos é ignorar a própria realidade operacional. Pilotos, controladores e mecânicos não são infalíveis; a diferença está em como o sistema reage e se adapta a essas falhas.
A inevitabilidade do erro humano não significa resignação ou conformismo. Pelo contrário: trata-se de reconhecer que a verdadeira segurança não nasce da negação do erro, mas da capacidade de aprender com ele. Sistemas de reportes voluntários, programas de treinamento contínuo e uma cultura justa (Just Culture) são instrumentos que convertem falhas individuais em aprendizado coletivo. Ao invés de sufocar a transparência por meio da criminalização, a aviação deve continuar a trilhar o caminho da prevenção, onde cada relato e cada incidente se transformam em insumo para o fortalecimento da segurança.
Como destaca Sidney Dekker, referência em Safety Science, “a segurança não é a ausência de falhas, mas a presença de defesas que tornam as falhas menos prováveis de se transformar em catástrofes”. Reconhecer a inevitabilidade do erro humano é, portanto, reconhecer a necessidade de sistemas resilientes, capazes de absorver falhas sem que estas resultem em tragédias.
Entre a falibilidade e a criminalização
O erro humano na aviação é um fenômeno inevitável, mas não homogêneo. É necessário distinguir entre a falibilidade inerente à condição humana deslizes não intencionais, lapsos de memória, limitações cognitivas diante de situações de alta pressão e a conduta negligente, imprudente ou dolosa, em que há escolha consciente por desrespeitar protocolos ou agir de forma temerária. O problema surge quando a fronteira entre esses dois campos se torna turva e, em nome de uma resposta imediata à sociedade, erros operacionais passam a ser enquadrados como crimes.
No Brasil, essa tendência encontra respaldo no artigo 261 do Código Penal, que prevê a criminalização de condutas que exponham aeronaves a perigo. Em alguns casos, a aplicação literal desse dispositivo acaba por incluir comportamentos que deveriam ser avaliados sob a ótica técnica e organizacional, e não penal. O mesmo movimento é observado em outros países: basta lembrar o caso do voo Air France 447, em que pilotos foram responsabilizados criminalmente por decisões tomadas em condições extremas, sem que houvesse, à época, instrumentos plenos para compreender as falhas sistêmicas que contribuíram para o acidente.
Essa criminalização da falibilidade gera efeitos perversos. De um lado, transforma o profissional em bode expiatório, deslocando a atenção da sociedade e das autoridades dos fatores organizacionais, regulatórios e técnicos que, em geral, também estão presentes no acidente. De outro, mina a confiança nos sistemas de reporte voluntário e confidencial, peças-chave da cultura de segurança. Afinal, quem vai reportar um erro ou uma falha se isso pode se converter em prova de acusação em um tribunal?
É nesse ponto que reside o risco maior: a aviação não avança com medo, mas com aprendizado. Se a criminalização indiscriminada da falibilidade se tornar prática corrente, o sistema deixa de ser transparente e passa a operar na defensiva, alimentando a cultura do silêncio. Isso não fortalece a segurança; pelo contrário, aumenta o risco de repetição de falhas, pois elimina a oportunidade de investigação franca e colaborativa.
O caminho, portanto, não é negar a responsabilidade, mas diferenciar falibilidade de imprudência consciente. A Cultura Justa, princípio reconhecido pela Organização da Aviação Civil Internacional (OACI), oferece essa lente equilibrada: trata o erro humano não intencional como oportunidade de aprendizado e prevenção, mas responsabiliza severamente condutas deliberadas que atentam contra a segurança. Assim, é possível manter o equilíbrio entre justiça e prevenção, sem transformar cada falha em sentença criminal.
O risco de sufocar a segurança de voo
Transformar falhas em crimes pode parecer resposta rápida à sociedade, mas os efeitos são corrosivos. O medo da responsabilização penal inibe reportes voluntários, mina a confiança nos sistemas de segurança e enfraquece a própria espinha dorsal do SGSO (Sistema de Gerenciamento da Segurança Operacional). Afinal, quem vai admitir uma falha se isso pode significar não apenas perder a licença, mas a liberdade?
Responsabilidade sem punitivismo
É claro que não se trata de absolver a imprudência ou o dolo. Mas a solução não está em transformar cada erro em sentença criminal. O caminho é fortalecer a Just Culture, que diferencia o engano honesto da negligência deliberada, e investir em políticas de prevenção: treinamento contínuo, gestão efetiva da fadiga e ambientes organizacionais que não punam a transparência. Cabe também ao Judiciário compreender que justiça, nesse setor, não se mede apenas em tribunais, mas também na capacidade de evitar o próximo acidente.
Reflexão final
Na aviação, cada incidente traz uma lição. Mas se a resposta for criminalizar indiscriminadamente, corremos o risco de matar a fonte de aprendizado que mantém a segurança em constante evolução.
“Na aviação, o erro não deve ser varrido para debaixo do tapete mas transformá-lo em crime é como apagar a caixa-preta antes da investigação terminar.”
Referências
BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 31 dez. 1940.
BRASIL. Código Brasileiro de Aeronáutica. Lei nº 7.565, de 19 de dezembro de 1986. Diário Oficial da União, Brasília, 23 dez. 1986.
BRASIL. Lei do Aeronauta. Lei nº 13.475, de 28 de agosto de 2017. Diário Oficial da União, Brasília, 29 ago. 2017.
DEKKER, Sidney. Just Culture: Restoring Trust and Accountability in Your Organization. 3. ed. Boca Raton: CRC Press, 2017.
REASON, James. Managing the Risks of Organizational Accidents. Aldershot: Ashgate, 1997.
CENIPA. Manual do Sistema de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (SIPAER). Brasília: Comando da Aeronáutica, 2016.
Por Hilton Rayol
